sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Para Marlene

Depois de mais ou menos um ano, a despedida foi repleta de luminosidade.
Antes, a chegada deles...
Quando você trouxe a encomenda, eu disse obrigada.
Animada, pediu que eu experimentasse.
Naquela tarde nublada, era novembro de 1988, o corredor que separava a sala dos três quartos parecia um caminho desconhecido. Talvez, o abrigo seguro de um último fio não encontrado. Talvez.
No quarto, ao tirar o lenço suavemente florido que envolvia a cabeça, percebi a leveza da encomenda.
Do lado de fora, você perguntava:
- Já experimentou?
Sem olhar a encomenda, coloquei-a e, timidamente, abri a porta.
Rapidamente, levou-me ao espelho do banheiro que ficava ao lado do quarto e, delicadamente, penteou os cabelos dizendo:
- Pareço uma dama de companhia, uma ama daqueles filmes antigos, e você está igualzinha uma princesa.
- Eu?
- Além de macios e naturais, esses cabelos têm uma luminosidade, né?
Meus olhos profundos de nascença elevaram-se, aos poucos, ao encontro da luz que aqueles fios guardavam.
Com o passar das nuvens sombreadas, os fios tornaram-me mais e mais brilhantes. Talvez, nunca saberei de quem eram mas, nos meses seguintes, eles também eram meus.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Desistência Provisória

Tristeza era presenciar o riso e esperança era de que fosse o riso um aflito. Lembrou-se das muitas vezes que fôra ao espetáculo e dos sorrisos emolientes e repartidos no circo. Desde os primeiros passos do palestrante, Maria Cecília percebera os trejeitos copiados e sombreados pelo terno desenhado.
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Intuição?
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Enxergou a pena e viu que era pesada, mas, tristemente, era uma pena.
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Das quatro palestras apresentadas nas últimas quatro semanas, Maria Cecília deu graças a Deus pela licença médica que justificou sua ausência da primeira. A quarta proferia gradiosamente a série: atentados à delicadeza cultural. Por hora, o responsável pelo show dizia aos tolos do templo faraônico, no afã da inteligência alcançada, que conhecia o que afirmava.
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- Quem sou eu para duvidar, pensava Maria Cecília.
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O tronco gritava e os tolos do templo faraônico vibravam. Vibração aflita, Maria Cecília esperava.
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Até aquele intitulado compositor cantou um aceno encantado diante do desmilingüido orador. Empolgado, o sujeito-palestrante comemorava a citação do filósofo X e do filósofo Y. Disparava ainda, a agenda das palestras seguintes.
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Depois, deu-se início ao arroto de palavrões. Seria uma das tentativas de aproximação aos faraônicos súditos?
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Bravamente, ele prosseguia e, bravamente, conseguia. O show de trejeitos baratos e bem remunerados, ainda, rosnava:
- Podem anotar e copiar. Se eu copiei de alguém, vocês podem copiar também!
- Hum... Deus salve a rainha! O palestrante assinava, realmente, estar um copiador! E que esquizóide cópia era aquela? Assim, pensava Maria Cecília.
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Há tempos a prudência levara Maria Cecília a uma desistência provisória.
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Ela desistia. E desistia provisoriamente.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

A vida de Estela

Sobre a cama de casal haviam quatro travesseiros. Dois de plumas e penas de ganso e outros dois de um material que ela não recordava. Quando foi puxar um dos travesseiros de plumas e penas de ganso no qual ele apoiava-se, ela percebeu um ruído que sugeria algum tecido rasgando-se. Como estava sonolenta, não quis conferir o que acontecia. Pegou esse travesseiro e o outro também de plumas e penas de ganso e colocou-os em cima de uma cadeira próxima. Assim, os dois poderiam dormir com os travesseiros que mais gostavam. Os outros de plumas e penas de ganso serviam apenas como adorno. Ele dormiu. Ela não. Maria Cecília começou a pensar o que poderia ter provocado a rasgadura no tecido. Sabia que aquele travesseiro não era usado e que só de vez em quando trocava os tecidos que os cobriam. Não lembrava a última troca e pensou que o tecido já poderia estar rasgado quando ela trocou-os. Sorriu. Pensou que já era tarde da noite e ela preocupada com um detalhe desses... Sorriu novamente. Esqueceu-se dos travesseiros e lembrou-se do que acontecera durante aquele dia. Por volta de meio dia e meia, Maria Cecília não encontrou vaga próxima ao restaurante no qual almoçavam três vezes por semana. Depois de duas insistências, ela avistou um carro em outra direção estacionado abaixo de uma grande copa de uma mangueira. Parou por ali. Quando saiu do carro, não foi ao restaurante esperá-lo como de costume. Ligou e disse para que ele estacionasse dentro da quadra, uma vez que uma vaga estava difícil. Depois da ligação, achou melhor caminhar um pouco para que ele pudesse avistá-la assim que chegasse. Começou a escutar um ruído gostoso. Caminhava devagar e à medida que seus pés encontravam as muitas e muitas folhas secas, uma aurora de quietude dava-lhe a mão como companhia. Os pés de Maria Cecília pararam e ela permitiu-se aquele instante. Viu muita vida. Viu uma mulher por volta dos quarenta e uma menina que aparentava dez anos com uma mochila nas costas. As duas estavam de mãos dadas, talvez mãe e filha. Viu três rapazes por volta dos quinze. Falantes, brincalhões... Com a chegada de uma brisa confiante, ela viu que muitas e muitas folhas caíam de uma árvore avivando um movimento diagonal. Ao mesmo tempo, um carro alto, estilo pick up, na cor prata, passava ao seu lado e trazia uma menina por volta dos sete anos. Ela usava óculos de grau e fitou Maria Cecília com uma meiguice no olhar. Também, ao mesmo tempo, a menina com o dedo indicador da mão direita ajustou os óculos, e Maria Cecília, também, com a mão direita retirou os escuros. Paradas, Maria Cecília, abaixo de uma árvore, e a menina, dentro daquele carro em movimento, olharam-se ternamente. Então, o carro se foi. Ele surgiu e Maria Cecília contou sobre a alegre quietude. Mais alguns instantes e, de olhos estrelados, chegaram ao Girassol colorido que aguardava os dois.