quarta-feira, 26 de agosto de 2009

A vida de Estela

Muitas vezes, basta uma imagem, basta uma música, basta uma frase, e uma lembrança ressurge à mente. Hoje, Estela, que antes era Maria Cecília, pensou durante algum tempo no que acontecera há uns dez anos. Naquele dia, ela fora trabalhar no período vespertino. Quando chegou para o expediente, os colegas, por volta de vinte e cinco, pareciam desconcertados. O boa tarde empolgante que Estela desejara a todos não atingira nenhum alvo. Preocupada, ela questionou o porquê de tanto descontentamento. Ressabiado, um colega mais próximo relatou a desventura. Estela emudeceu. Estela olhou a sua volta e sentiu-se congelada numa câmara estreita, muito estreita. Não conseguia imaginar porque Cristina rompera palavras tão afiadas em pedras de esmeril. Meu Deus, como a força de um atrito é capaz de rearrancar um corpo de um corpo? Apesar do extraordinário instinto maternal, Estela não conseguira fitar Maria. Estela permanecia atônita. Estela passou, levemente, as mãos em sua barriga e pensou que poderia ser ela. Não que aquilo fosse o fim do mundo. Não que aquilo fosse o fim. Não. Mas só quem desejara ser mãe, mais que qualquer outro sonho, poderia compreender a inquietação da imobilidade daquele momento. Maria cuidara dos irmãos mais novos. Maria fazia caridade. Maria trabalhava. Maria cantava. Maria casou-se aos trinta e já desejava um filho. Dois anos seguintes e uma doença arrancara os óvarios e úteros.
- E você que é tão seca, tão seca, que chega a ser seca por dentro - disse Cristina.
Mais tarde, naquele mesmo dia, a noite chegara mais fria, mais pálida...
Deserta.

4 comentários:

sblogonoff café disse...

Ei.
Que bom que você postou hoje.
Eu li e reli o texto pra ver se eu havia entendido tudo!
Algumas partes ainda não entendi, como Estela que antes era Maria Cecília!! E a quem a Cristina destinou aquelas palavras?!

Achei também interessante a construção: inquietação da imobilidade. Paradoxal e bem expressivo.

Minha mãe quando tirou o útero ficou muuito triste. Quase depressiva. E olha, ela tem 5 filhos! Ela não teria mais filhos, mas para ela aquilo era uma espécie de conexão com Deus, com o poder de criar.
Eu sonho muito em ter filhos e morro de medo de que algum mal possa impossibilitar isso. Existem alternativas, mas acho que consigo saber a sensação de deserto, de solo infértil, de terra seca que acomete as mulheres.
Enquanto tantas outras abortam...

Sheyla disse...

Mi,
Maria Cecília é a "protagonista" deste blog. Por algum motivo, algum dia eu escrevo, ela mudou seu nome para Estela.
Cristina dirigiu as palavras para Maria no post de hoje.
Gostei muito quando pensei em escrever: a inquietação da imobilidade daquele momento. Pensei numa espécie de tribulação interior de todos naquele dia.
Bjs.

Elga Arantes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Elga Arantes disse...

Também tive que ler o texto duas vezes. Parei por ai. Minha mente é muito fértil e, apenas em duas leituras, conseguiu imaginar várias versões, possibilidades... Algumas explicações metafísicas... Ou até quanticamente explicáveis, rs!

Sempre acho que as histórias tem uma ligação espiritual, ou um cerne meio perispiritual do autor... O que também dá margem para a psicografia... O que cortaria o cordão umbilical (?).

Viu? Tem dias que é melhor a gente não pensar demais. A gente acaba acreditando que tem o dom da vidência ou premuonição ou intuição. Porque em bola de cristal, deixei de acreditar, ontem.

Um beijo...